O Núcleo de Estudos da Infância e Juventude da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina (Esmesc) divulga a todos os magistrados nota de esclarecimento e solidariedade às vítimas da violência, pela manutenção da idade penal aos 18 anos e pela implementação de ações preventivas contra a violência, baseadas em políticas sociais eficazes e programas de atendimento sócio-educativo efetivos em todos os municípios do Brasil:
A Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude – ABMP, atenta à recente intensificação das pressões de certos setores da mídia e da sociedade em favor da redução da idade penal no Brasil, a pretexto da participação de um adolescente no bárbaro episódio que resultou na morte de uma criança de apenas seis anos de idade, ocorrido no dia 07 de fevereiro último, na cidade do Rio de Janeiro, vem, pela presente nota pública, expressar sua solidariedade aos familiares de todas as vítimas da violência e da criminalidade nesse País, bem como reiterar seu posicionamento em defesa da manutenção da inimputabilidade penal aos menores de 18 anos, tendo em vista o seguinte:
1 – A responsabilidade penal a partir dos 18 anos de idade está em vigor no Brasil desde 1940 e é garantia constitucional consagrada na Carta Magna de 1988, com status de cláusula petrea; trata-se de opção de política criminal adotada pela maioria dos países, alinhada com a normativa internacional que trata dos direitos humanos das crianças e jovens e baseada na assertiva de que, até os 18 anos de idade, o ser humano ainda não pode ser considerado suficientemente maduro em sua evolução física e psíquica, portanto não pode responder pelos seus atos da mesma forma que os considerados adultos.
2 – Em tema de violência e criminalidade, a atuação da mídia em torno de episódios pontuais influencia a sensação de pânico que afeta a população, especialmente nos grandes centros urbanos; isto acontece mediante divulgação seletiva dos crimes mais graves, justamente por despertarem maior interesse do público, gerando a falsa impressão de que os crimes violentos são os mais freqüentes, o que não é verdade. De acordo com o Guia para a Prevenção do Crime e da Violência (Ministério da Justiça/SENASP, 2005), um estudo comparativo entre os crimes divulgados pelos jornais Folha de São Paulo e Jornal do Brasil e os crimes registrados pela Polícia no Estado de São Paulo, em 1997 e 1998, revelou que o maior número de crimes registrados pela polícia – casos de furto e de lesões corporais – recebeu a menor atenção dos veículos de comunicação, enquanto os casos de homicídio, embora representassem apenas 1,7% dos crimes registrados pela Polícia, foram responsáveis – nos dois jornais pesquisados – por mais de 40% das matérias sobre crime. Sobre isto, a publicação prossegue com a seguinte análise: esta seleção operada pela mídia pode expressar, também, uma estratégia especificamente focada para capturar audiência e ampliar mercado. Não por acaso, pode-se observar em todo o mundo que os mais desqualificados órgãos de imprensa costumam conceder um grande destaque ao crime e a violência, tanto quanto a outros temas que podem suscitar emoções ou “sensações fortes”. De onde deriva, aliás, o termo “sensacionalismo”. Seja como for, pode-se afirmar que a imprensa terá sempre muita dificuldade de produzir um discurso equilibrado e racional sobre o crime e a violência porque os eventos mais graves, mesmo que sejam raros, tendem a adquirir sempre um peso desproporcional na cobertura jornalística, induzindo as pessoas a um erro de percepção a respeito da incidência dos crimes violentos.
3 – É imperativo lembrar que, ao contrário do que somos induzidos a imaginar por abordagens episódicas, oportunistas e sensacionalistas da mídia, a participação de adolescentes em infrações penais graves, com emprego de violência contra vítimas inocentes, não ocorre em grande escala, mas apenas excepcionalmente, representando menos de 2%, consideradas as infrações graves praticadas por imputáveis e inimputáveis; a participação geral de adolescentes no montante das infrações penais cometidas no Brasil, consideradas as graves e as não graves, situa-se em torno dos 10%.
4 – Estudos efetuados pelo ILANUD, abrangendo os anos de 2001 a 2003, constataram que os índices de participação de adolescentes nos homicídios dolosos registrados no período, em São Paulo, variaram entre 0,8 e 0,9%, sendo que praticamente a metade do total dos adolescentes apreendidos na Capital de São Paulo eram acusados da prática de delitos patrimoniais, como roubo e furto.
5 – Estes números indicam claramente que os principais responsáveis pelos índices de violência e criminalidade do Brasil são os criminosos adultos, e não os adolescentes envolvidos em atos infracionais; por outro lado, é flagrante a constatação de que a União, estados e municípios têm negligenciado gravemente na implantação dos programas e estruturas necessárias para a execução das medidas sócio-educativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma vez que a imensa maioria dos municípios ainda não dispõe de programas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade, devidamente estruturados e dotados de um projeto pedagógico consistente, ao passo que a medida de internação apresenta um déficit nacional de 3.400 vagas, conforme recente levantamento divulgado pela SEDH-PR.
6 – A inexistência ou insuficiência destas estruturas também contribui para o sentimento de impunidade em relação aos delitos atribuídos a adolescentes, ao mesmo tempo em que se perde a oportunidade de uma atuação efetiva no plano preventivo, já que as medidas sócio-educativas em meio aberto, desde que tempestivamente aplicadas aos adolescentes que iniciam trajetória infracional, ensejariam a ação de recursos pedagógicos capazes de frear a evolução da maioria desses adolescentes no caminho da criminalidade.
7 – É de se lamentar, outrossim, a notória falência das políticas sociais públicas no Brasil, o sucateamento e a má qualidade do ensino público, a inexistência de alternativas eficientes e suficientes de profissionalização e emprego para jovens, a proliferação de favelas nas periferias das grandes cidades, a inexistência de políticas e equipamentos de esporte, cultura e lazer nestas mesmas comunidades e a ineficiência das políticas repressivas de segurança pública, permitindo que os espaços que deveriam ser ocupados pela presença do Estado sejam tomados pelos chefes do tráfico de drogas e de outros setores da criminalidade organizada; houvesse maior investimento em ações preventivas junto às populações de risco e certamente a realidade brasileira seria outra.
8 – É o conjunto desses e outros fatores que geram a real impunidade e a sensação de que no Brasil o crime compensa, caracterizando-se como alienados ou levianos os discursos que, volta e meia, parecem atribuir aos adolescentes toda a responsabilidade pelos índices atuais de violência e criminalidade em nosso País.
9 – Qualquer análise equilibrada do contexto acima descrito indicará que eventual alteração legislativa reduzindo genericamente a idade penal, ao invés de produzir a diminuição dos índices de infrações penais graves cometidas por menores de 18 anos, servirá apenas para incluir milhares de adolescentes e jovens – a grande maioria de periferias pobres e autores de delitos meramente patrimoniais – em nosso medieval, corrompido, ineficiente e já superlotado sistema carcerário, com seus índices de reincidência acima de 70%, misturando-os ao convívio de criminosos adultos, com todos os efeitos indesejáveis que esta convivência irá gerar; ao final de alguns anos privados não só da liberdade, mas também de um atendimento social e pedagógico adequados à condição de pessoas em desenvolvimento, “lapidados” pela rotina de um ambiente sabidamente promíscuo e violento, estes jovens serão inevitavelmente devolvidos à sociedade, que então os rejeitará como adultos estigmatizados e, aí sim, os empurrará definitivamente para a prática de ações criminosas.
10 – Também carece de consistência a alegação de que a suposta impunidade patrocinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente estimula os criminosos adultos a utilizarem menores de 18 anos em seus delitos, ou mesmo induzi-los a assumirem falsamente a autoria de seus crimes; como muitos já disseram, bastaria reduzir a idade penal com base em tal argumento para, no dia seguinte, verificarmos o recrutamento para o crime de adolescentes cada vez mais novos, até chegar às crianças, de modo que, em algum momento, os arautos deste discurso se veriam compelidos a exigir a responsabilidade penal de infantes de 6 ou 7 aos de idade.
11 – Por outro lado, é de todo lamentável que o outro lado da moeda, representado pelos impressionantes e crescentes índices de mortes violentas de jovens entre 15 e 24 anos de idade, no Brasil, ainda não tenha merecido da mídia e da sociedade em geral o mesmo sentimento de indignação. De acordo com o IBGE, no ano de 2002, 70,67% das mortes da parcela masculina nessa faixa etária resultaram de causas violentas, a maior taxa até então apurada. Em 1990, era de 60,25%. O pior quadro ocorreu na região Sudeste, onde, em 2002, a violência chegou a ser causa de 79,64% das mortes dos rapazes de 15 a 24 anos. A maior parte das mortes por homicídio atinge os jovens das comunidades mais vulneráveis socialmente, conforme já salientou o sociólogo Cláudio Beato Filho, em 2004: o risco de vitimização por homicídio nas grandes cidades brasileiras, hoje, é cerca de 300 vezes maior para um jovem da periferia se comparado com o risco para o mesmo crime que corre um senhor de meia idade de um bairro típico de classe média. (Ciência Hoje, n. 204, maio de 2004). Quanto a isso, pouco ou nada se fala ou escreve.
12 – A ABMP lamenta, enfim, que a exploração jornalística do martírio do pequeno João Hélio e de outras vítimas pontuais de atos violentos praticados com a participação de adolescentes, bem como da imensa e irreparável dor dos familiares destas vítimas, esteja servindo de pretexto para a demonização generalizada da juventude brasileira e de baluarte para um movimento que, ignorando os reais fatores sociais da violência e da criminalidade, tenta substituir um sistema baseado em princípios de prevenção especial – onde se busca a reeducação e reorientação de cada jovem em conflito com a lei -, por um sistema retributivo-penal que, ao final das contas, servirá apenas para adiar e aumentar o problema.
Diante de todas as considerações acima, a ABMP reafirma sua oposição a toda e qualquer proposta de redução da idade penal no Brasil, bem como das demais propostas legislativas existentes no Congresso Nacional, preconizando a ampliação dos prazos de cumprimento da medida sócio-educativa de internação.
Outrossim, a ABMP se coloca à disposição para colaborar com o debate equilibrado em prol da elaboração de políticas públicas que possam contribuir para a questão da segurança pública, respeitando os direitos fundamentais das crianças e adolescentes e fazendo com que o Estado Brasileiro honre seus compromissos com as futuras gerações.
São Paulo, 27 de fevereiro de 2007.
A Diretoria da ABMP