A Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) publica artigo de autoria do Juiz João Marcos Buch, intitulado “Caos”.
Caos
Por João Marcos Buch, juiz de Direito da 2º Vara Criminal da Comarca de Joinville
Aos trancos e barrancos a vida ou a sobrevida do povo brasileiro segue. Olhamos com espanto e preocupação para a guerra civil instalada no Iraque, para o caos palestino, para as epidemias que flagelam o continente africano. A miséria brasileira, esta não nos atinge. Afinal, como o tic-tac do relógio no criado mudo, aquilo que é permanente acaba passando despercebido, pois supostamente normal.
É lógico então que um ato bárbaro e violento como foi a morte do menino João Hélio na cidade maravilhosa acaba nos sacudindo e nos golpeando fundo. E a velha questão da segurança pública volta à cena. No calor das emoções não faltam os arautos do conhecimento, senhores da verdade, com palavras de impacto e soluções definitivas, de segurança, lei e ordem. E os congressistas, movidos pelos sentimentos paranóicos coletivos de vingança, acabam por encampar estas “idéias”. Como Pilatos, aprovam uma lei inconstitucional e lavam as mãos, dando o assunto por encerrado.
Ora, o fenômeno da violência, queiram ou não, é muitíssimo mais complexo e vem sendo estudado há séculos. Muito surpreende então ouvir formadores de opinião defendendo mais punição aos “cidadãos do mal” e redução da maioridade penal. A violência, esquecem-se estes senhores, não se resume a crimes de roubo, seqüestro, latrocínio. Igual violência, mas em maior escala, é, por exemplo, aquela que mata ou lesiona milhares de pessoas em acidentes do trabalho, é aquela que mata ou lesiona milhares de pessoas no trânsito, é aquela que mata ou lesiona milhares de pessoas nas filas de atendimento hospitalar, é a violência da fome, da falta de moradia, da falta de terras, da falta de educação, é a violência do desespero.
É claro que a violência urbana, decorrente de crimes graves contra a integridade física, precisa ser discutida e trabalhada, tanto quanto as demais violências mencionadas acima. Mas o que se quer dizer é que idéias simplistas de redução da maioridade penal e agravamento de penas nunca foram, não são e nunca serão fatores de contenção e prevenção da criminalidade.
A redução da imputabilidade penal para os 16 anos de idade e o agravemento das penas além disso não podem ser aceitos, em absoluto, por dois motivos, um político e outro moral. Existem milhares de mandados de prisão expedidos pela justiça não cumpridos porque não há espaço nos cárceres, superlotados, com quase o triplo de sua capacidade. O rigorismo penal, iniciado pela casual lei dos crimes hediondos no início dos anos noventa e sucedido por leis de emergência, não trouxe nenhuma melhora na segurança pública, pelo contrário, como efeito colateral superlotou o cárcere. Assim, por uma questão de política de Estado é preciso, para efetivar a legislação de pânico já existente, que no mínimo se construam penitenciárias, capazes de agir para trazer os presos ao convívio social, que cumpram normas mínimas de respeito à integridade dos detentos, com vagas para o trabalho e estímulo ao estudo. E mais, que estas penitenciárias possuam agentes carcerários tecnicamente preparados e equipados, com remuneração digna, fiscalização e controlados no combate à corrupção.
Por outro lado, a olhos nus constatamos, especialmente nos grandes centros urbanos, que são milhares as crianças presentes em semáforos, esquinas e viadutos, abandonadas à própria sorte, no impiedoso flagelo da miséria e anonimato. Por uma questão moral, o Estado não pode simplesmente aguardar que esta criança chegue à adolescência para então sim se fazer presente com seu braço punitivo e impiedoso. O direito e o Estado primeiro precisam se utilizar de todos os seus instrumentos, administrativos, culturais, econômicos, sociais, educativos, desde antes, desde a formação da família e na primeira infância. A redução da maioridade penal e o agravamento das penas num estado que a tudo falta ao cidadão, menos quando é para puní-lo, é eticamente inaceitável. Cumpre aos operadores do direito a consciência disto e a descoberta de caminhos que coloquem um pouco de racionalidade nesta irracionalidade da segurança pública, disseminada no senso comum.
Muitas são as dúvidas e muitas são as respostas apresentadas. Uma coisa entretanto é certa: não são com verdades finais e fórmulas milagrosas que a solução virá, muito menos pela criação de uma nova lei. A violência é um fenômeno histórico e complexo e que, diante do caos vivido, precisa com urgência ser combatida, com medidas concretas, mas fundadas em sóbrio e racional debate. O tempo urge e o futuro não se furtará em nos responsabilizar. Já nos cobramos pela trágica e pungente violência que o menino João Hélio sofreu. Eu já tive a idade dele, ele não terá a minha. Não pode ser assim. Não é certo.