Por Luiz Fernando Boller,
Juiz Diretor do Foro de Tubarão-SC
O contrato é o acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos.
Dentre as modalidades contratuais, insere-se o Seguro, que é aquele pelo qual uma das partes (segurador) se obriga para com a outra (segurado), mediante o pagamento de um prêmio, a garantir-lhe interesse legítimo relativo à pessoa ou a coisa e a indenizá-la de prejuízo decorrente de riscos futuros previstos no contrato.
Seguro real é aquele que visa proteger o interesse que alguém possa apresentar em relação à determinada coisa, e é essa, `a priori´, a modalidade de contrato oferecida pelas seguradoras, quando se propõem a garantir eventuais prejuízos ocasionados a veículos automotores, ou, ainda, indenizar seu proprietário por furto ou roubo do bem.
Em regra, tal espécie de contrato de seguro não leva em conta somente a coisa segurada, porquanto as seguradoras conferem especial atenção às características pessoais do segurado, como se nota no exame da `cláusula de perfil´, o denominado questionário de avaliação do risco, que busca elementos de classificação da possibilidade de pagamento da indenização num determinado espaço de tempo, como condição essencial à aceitação do risco e eventual pagamento de posterior indenização.
Desse modo, se o segurado for do sexo masculino, solteiro, aposentado, com idade aproximada de 50 anos, e que utilize o automóvel apenas para lazer, guardando o veículo em local protegido (garagem), o valor do prêmio será reduzido. Já um proponente com 23 anos de idade, que usa o automóvel com a finalidade de locomover-se diariamente ao escritório onde trabalha e à faculdade onde estuda a noite, ambos os locais desprovidos de garagem, deverá pagar valor de prêmio consideravelmente agravado.
Conclui-se, desta forma, que a cláusula de perfil é incompatível com a mutualidade inerente aos contratos de seguro, isto é, não há socialização do risco; ao contrário: aquele que pode mais economicamente, é, de fato, quem menos paga pelo prêmio.
O art. 51, parágrafo 1º, inciso I, do CDC, presume exagerada a vantagem que ofende os princípios do sistema jurídico a que pertence. Já o inc. IV do referido artigo, classifica como nula, a cláusula que coloque o consumidor em desvantagem exagerada.
Destarte, os contratos de seguro ofertados por algumas seguradoras, enquanto dotados de cláusula de perfil, por não socializarem o risco e não observarem a mutualidade, destoam do sistema jurídico geral que traça o contorno dos seguros.
Necessário, então, que as seguradoras sejam obrigadas a buscar o real interesse que o segurado apresenta sobre determinado bem, para, a partir disso, fixar o prêmio para futura e eventual indenização, convindo esclarecer que o proprietário tem o direito de usar e dispor da coisa podendo emprestá-la, ocasionalmente, a terceiros e, mesmo assim, continuar a ter interesse sobre o automóvel.
Da mesma forma, até mesmo o terceiro, que tenha recebido o bem por ato de transferência do segurado, poderá invocar legítimo interesse em face da seguradora na hipótese de ocorrência de sinistro, visto que, se a proteção refere-se ao interesse e não ao veículo em relação a um condutor específico, admissível a transferência da proteção, ou seja: a apólice poderá ser transferida ao novo proprietário e este, por sua vez, poderá invocar seu direito à indenização diante da seguradora na ocorrência de sinistro.
Os contratos de seguro oferecidos pelas seguradoras, dotados de cláusula de perfil, limitam a circulabilidade da proteção.
O artigo 760 do Código Civil, quanto à titularidade, estatui que as apólices podem ser nominativas, à ordem ou ao portador.
Serão nominativas, se mencionarem o nome do segurador, o do segurado e o do seu representante se houver, ou o do terceiro em cujo nome se faz o seguro (CC, art. 760); à ordem, transmissíveis por endosso, ou ao portador, transferíveis por tradição simples, outorgando-se ao detentor da apólice, e inadmissíveis em se tratando de seguro sobre a vida (CC, art. 760, parágrafo único). Assim, nada obsta a transmissibilidade das apólices, a menos que estas expressamente a proíbam.
Na prática, as seguradoras não somente exigem a comunicação de alienação do veículo (ou bem segurado), como também, se arrogam no direito de concordar com as alterações que tenham sido comunicadas pelo consumidor, impondo sanção anti-jurídica, isentando-se de suas responsabilidades, razão pela qual entendo ser preciso reconhecer a nulidade da cláusula de perfil, especialmente o seu efeito sobre a perda de direitos, porquanto restringe direito fundamental inerente à natureza do contrato, qual seja, a circulabilidade da apólice e da proteção e garantia de um interesse.
A forma delineada por algumas seguradoras ameaça o objeto do contrato – interesse de alguém em relação a determinado bem – e o próprio equilíbrio contratual, o que constitui vantagem exagerada (art. 51 IV e §1º II do Código de Defesa do Consumidor).
De outro vértice, é conferido ao titular do domínio o direito de dispor da coisa (`jus abutendi´), isto é, poderá aliená-la, gravá-la, bem como submetê-la ao serviço de outrem, o que deve ser preservado pelas seguradoras, sob pena de afronta ao disposto no art. 51 da Lei 8.078/90, que tacha de nula a cláusula que estabelecer obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.
Com efeito, tal modalidade de contrato – apesar de em princípio parecer vantajosa ao consumidor, que pagaria um prêmio de menor valor – na prática é utilizado com o fito de protelar o pagamento da indenização ou justificar a recusa de tal quitação, na hipótese de sinistro.
Na realidade, algumas seguradoras, inclusive, invocam tal circunstância para presumir a má-fé do consumidor, quando a lei determina que o contrato de seguro caracteriza-se como de boa-fé.
Importante avultar que o artigo 766, `caput´, do Código Civil exige para que ocorra a perda do direito indenizatório a comprovação da má-fé do segurado ao prestar declarações inexatas ou omitir circunstâncias que poderiam influenciar na aceitação da proposta, ao passo que o parágrafo único do referido artigo dispõe que, se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, a seguradora tem apenas direito a resolver o contrato ou cobrar a diferença do prêmio (se ocorrido o sinistro).
Assim, algumas seguradoras é que atuam com má-fé, uma vez que, ao oferecer o contrato de seguro, não informam devidamente o consumidor e com isso desejam, na realidade, justificar o não pagamento da indenização futura.
Na verdade algumas companhias de seguro – a despeito de utilizarem-se da cláusula perfil como situação de vantagem aos consumidores – verdadeiramente não prestam aos contratantes informações seguras a respeito da implicação das informações prestadas por ocasião da celebração do contrato.
O estudo dos casos enseja a conclusão de que se existentes dúvidas ou contradições em relação às informações prestadas pelo consumidor, quando da contratação e às circunstâncias em que ocorreu o sinistro, algumas seguradoras já as tomam como justa razão para não adimplir sua principal obrigação, negando indenização dos segurados pelos prejuízos sofridos.
Frise-se que o artigo 51, IV da Lei 8.078/90 considera abusiva cláusula que estabelecer obrigação incompatível com a boa-fé, cumprindo ao magistrado pesquisar se as partes agiram com boa-fé para conclusão do negócio jurídico de consumo, a fim de verificar se a cláusula sob exame é, ou não, válida.
Exalto, ainda, que a conduta de algumas seguradoras afronta as determinações da SUSEP, que, ao cuidar do questionário de avaliação do risco, alerta para o fato de que, ao incluir perguntas subjetivas no questionário de avaliação do risco, a seguradora não poderá negar a indenização caso o segurado preste declarações incorretas, especialmente que, no caso do segurado omitir ou prestar informações incorretas no questionário de Avaliação do Risco, a seguradora só poderá recusar o pagamento de indenização se comprovar que houve agravamento do risco e que o sinistro teve relação direta com este agravamento.
Aliás, o art. 46 da Lei 8.078/90 dispõe que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. Logo, além de ser conferida ao consumidor oportunidade para que entenda o real conteúdo do contrato ofertado, é preciso que o referido pacto seja redigido de modo claro e preciso, o que não se coaduna com diversos contratos ofertados por determinadas companhias de seguro.
Além do mais, a falta de clareza nos contratos de seguros é a responsável pelo maior número de conflitos que chegam ao Judiciário.
Sem dúvida que as seguradoras descomprometidas com os direitos e princípios que regem as relações de consumo – seja por não informarem devidamente aos consumidores sobre as restrições quase que absolutas no uso e gozo do bem segurado – necessitam ter sua atividade corrigida pelo Judiciário.
Sou do entendimento que as companhias seguradoras deveriam ser obrigadas a informar de modo adequado aos consumidores que com elas venham a contratar, as reais implicações da cláusula de perfil (questionário de avaliação do risco), especialmente no tocante à perda do direito à indenização (art. 129, inc. II e III da Constituição Federal; arts. 81, § único, inc. I, II e III, 82, inc. I e 90, todos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), e arts. 1º, 5º, e 12º da Lei 7.347/85).
Em todo o país, constam nos bancos de dados dos órgãos de defesa ao consumidor (PROCON´s), infinito número de reclamações contra determinadas seguradoras, em razão do não pagamento de indenizações. Algumas, inclusive, negam-se ao pagamento de indenização, por exemplo, na hipótese de furto ocorrido quando o veículo tiver sido estacionado fora de garagem.
Logo, se declinado na proposta que o veículo, de regra, seja guardado em garagem e o furto tenha ocorrido em via pública, do consumidor é retirado o direito à indenização devida.
Da mesma forma, algumas seguradoras negam o direito à indenização caso o veículo, no momento do sinistro, esteja sendo conduzido por pessoa com idade diversa daquela declarada na proposta de seguro. Assim, algumas companhias de seguro atuam de modo contrário aos comandos do Código de Defesa do Consumidor, porquanto não somente deixam de informar adequadamente o consumidor, bem como, porque oferecem contrato de seguro dotado de cláusulas abusivas, que destoam da verdadeira natureza jurídica que cerca o contrato de seguro.
Concluindo, entendo que as seguradoras não mais deveriam celebrar contratos de seguro dotados de cláusula de perfil, ou, alternativamente, deveriam informar ao consumidor sobre as características do negócio e do questionário de avaliação do risco, especialmente as reais implicações das informações que este vier a declarar, expressamente admitindo a circulabilidade da apólice (transferência da garantia à terceiro), elaborando questionário para verificação do `perfil´ do contratante de forma clara e precisa, para que possa ser efetivamente analisado e determinado o interesse protegido, bem como os riscos, admitindo seja o bem segurado eventualmente utilizado por pessoa diversa da descrita na apólice, sem que isto implique na perda do direito à indenização na hipótese de sinistro.
Aliás, quando se esgotarem as negociações com o SAC-Serviço de Atendimento ao Cliente da própria seguradora onde contratou o seguro e não se chegar a um acordo, recomendável àqueles que pagam o prêmio de um seguro e estão garantidos por este, que procurem o PROCON (Programa Estadual de Orientação e Proteção ao Consumidor), bem como a SUSEP, autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, responsável pelo controle e fiscalização do mercado de seguros no Brasil.
Em última instância, o segurado lesado deverá socorrer-se da Justiça e, até mesmo, da mídia, publicamente denunciando a violação de seu direito.
Fonte: Assessoria de Comunicação Social da AMC