A democracia que queremos – Artigo – Juíza Mônica Elias de Lucca

O recente Decreto 8243, de 23 de maio de 2014, instituiu no Brasil a Política Nacional de Participação Social gerando vorazes reações contrárias no mundo jurídico, no meio político e na imprensa.

A democracia historicamente consentida nunca deixou de ser meramente nominal. Na Grécia antiga, reverenciada como a origem desta forma de governo “do povo” e “para o povo”, o “demos” ateniense, era limitado à elite minoritária dos homens instruídos e excludente das mulheres, dos menores de 18 anos, dos não-cidadãos e dos escravos. O reduzido contingente possibilitava a democracia direta, apenas encontrada entre tribos germânicas, na Grécia antiga e em alguns pequenos cantões suíços[1].

No Brasil, temos culturalmente consolidada a ficção da democracia representativa, em que a vontade popular é, teoricamente, expressa por intermédio de representantes eleitos. A realidade racionalizada impele ao enfrentamento de dois problemas no atual estado da arte: 1o) o mito da eficácia; e 2o) a impossibilidade de concretização.

A análise cruel de Randolph Lucas desfaz a ilusão da eficácia: ”A democracia não tem distribuído benefícios. Pensava-se que ela eliminaria a injustiça, aboliria a pobreza e criaria uma sociedade na qual todos pudessem desempenhar um papel criativo e significativo. Nossa sociedade nãé perfeitamente justa; ela inclui muitas pessoas pobres e até algumas que se julgam desprivilegiadas; ela é ofensivamente impessoal e insensível aos interesses e aspirações do indivíduo. Aqueles que acalentavam grandes esperanças na democracia e lutaram na expectativa de que ela resolvesse todos os problemas que nossa sociedade enfrenta, sentem-se enganados.”[2]

Além disso, a vontade popular é mera figura de retórica, insuscetível de ser identificada, como explica Hans Kelsen: a doutrina de que a democracia pressupõe a crença na existência de um bem comum objetivamente determinável, de que o povo é capaz de conhecê-lo e, consequentemente, transformá-lo no conteúdo de sua vontade é uma doutrina errônea. Fosse correta, a democracia não seria possível. Pois é fácil demonstrar que não existe um  bem comum objetivamente  determinável, que a questão quanto ao que possa ser o bem comum só pode ser respondida através de juízos de valor subjetivos que podem diferir fundamentalmente entre si.” [3]

Tais prismas desvendam a insuficiência da democracia representativa. A metamorfose é necessária.

Como estratégia reativa, a normatização inovadora, Decreto 8243/2014, inseriu na política nacional um mecanismo distinto de participação social, legitimando o seu manejo por dez categorias institucionais definidas em conceitos fechados mediante diretrizes claras de interlocução com o Governo Federal.

Não se trata, em absoluto, como afirma a crítica, de uma ousadia presidencial capaz de comprometer o equilíbrio, a autonomia e a soberania estatal. O modelo democrático atual não está sob risco.  Talvez a perplexidade decorra do apego ao hábito do perene inconformismo. Os discursos oposicionistas terão que ser adaptados.  

O Decreto concede apenas duas coisas: a visibilidade e a escuta.

A capacidade de interferência nas políticas públicas, a rigor, não está assegurada. A reserva “autocrática” do poder de decisão política não foi afetada pelo texto. Portanto, até este momento, o Princípio da Participação foi apenas nominalmente incrementado. Não obstante, o otimismo crônico que move um idealista não pode deixar de registrar que, se bem usada, a ferramenta poderá constituir-se em uma nova dimensão da praxis democrática nacional, resultando em “acentuar aquilo que em ciência política se chama orientação de input. [4]

Compete-nos, então, investir na qualificação da sociedade civil para o adequado manejo da nova Política Nacional de Participação Social, para que se torne um instrumento de cidadania capaz de fomentar a conscientização política. Podemos não ter, ainda, a Democracia que queremos, mas é a democracia possível no contexto da nossa realidade cultural e que abre uma perspectiva favorável à construção do devir que pode, a médio prazo, ampliar efetivamente o peso da opinião dos mandatários na definição das políticas públicas prioritárias do País.

* Juíza de Direito Mônica Elias de Lucca, comarca de Indaial (SC)

 

 

 

[1] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. Martins Fontes. SP:1998, p.412.

[2] LUCAS, John Randolph. Democracia e Participação. Tradução de Caio Paranhos Rocha. Editora UNB, Brasília: 1985. p.4.

[3] KELSEN, Hans. A Democracia. Tradução de Vera Barkow. Martins Fontes.SP:1993, p.141

[4] CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7a ed. 14a reimp. Edições Almedina. Coimbra/Portugal: 2003.p.301

 

 

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