Falar sobre traumas e violências sofridas não é tarefa fácil, especialmente quando a vítima é uma criança ou um adolescente. Mesmo assim, em muitos casos que chegam ao Poder Judiciário, o depoimento da vítima é essencial para que o juiz possa avaliar e chegar a uma sentença. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que a criança tem o direito de ser ouvida em processos judiciais que lhe dizem respeito. Porém, ela deve ser protegida de sofrimentos durante a audiência. Por isso, cada vez mais magistrados estão buscando alternativas para melhorar a prática da oitiva de menores.
Em 2017, a Lei n. 13.431 tornou obrigatório o chamado Depoimento Especial, que consiste em uma série de procedimentos que procuram humanizar a situação da audiência, considerando as peculiaridades da infância. É o que ocorre na Comarca de Braço do Norte, onde atua o juiz Klauss Corrêa de Souza. No dia da audiência, as crianças e os adolescentes são recebidos na sala da oficiala da Infância e Juventude Edna Wernke Niehues. Assim, evita-se que encontrem com o agressor e testemunhas do processo. O ambiente garante segurança e acolhimento para que a oficiala possa fazer as perguntas necessárias, de acordo com a orientação do juiz.
Veja também: o Depoimento Especial foi destaque na edição 94 do jornal O Judiciário.
Experiência desde 2011
Todo o procedimento, desde a entrada na sala, é gravado em vídeo. “A conversa começa tratando da rotina da criança e de coisas que goste de fazer. Esta é uma técnica para facilitar o acesso à memória dela, incentivando lembranças boas”, explica Edna. Ao iniciar o depoimento em si, as perguntas não são diretas. A criança é quem tem que contar a história. “O ideal é que a vítima fale pelo menos 80% do tempo”, aponta. Além disso, os profissionais que atuam no Depoimento Especial procuram se utilizar de um vocabulário acessível para a criança, sem os termos jurídicos comuns em audiências, e evitam perguntas que envolvam sentimentos.
Edna atua no Poder Judiciário há 23 anos e trabalha nos depoimentos especiais desde 2011, quando o depoimento especial foi implantado na comarca de Braço do Norte pelo juiz Klauss Corrêa de Souza. Em setembro de 2018, como servidora efetiva do Judiciário, a oficiala fez o curso de capacitação da Academia Judicial. Desde então, passou a conduzir a oitiva de crianças e adolescentes com a técnica do depoimento especial. De acordo com as características previstas pelo Tribunal de Justiça, sua sala no fórum foi adaptada para melhor receber as vítimas e testemunhas.
“É severamente duro atuar em processos criminais envolvendo crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, de sorte que o depoimento especial milita para auxílio na tarefa de busca da verdade”, pondera o juiz. Até este ano, pelo menos 50 audiências foram realizadas com a aplicação do sistema. O magistrado acredita que o depoimento especial traz maior tranquilidade para o juiz porque oferece ferramentas para “contemplar o que é possível fazer para que a criança ou adolescente sofra menos e não reviva seus traumas”, avalia Corrêa.
Foco na prevenção
Na comarca de Ponte Serrada, o juiz Luciano Fernandes da Silva, implantou desde novembro do ano passado um protocolo para ouvir crianças e adolescentes vítimas de violência. Ele estabelece as etapas do processo e o papel de cada um dos integrantes da rede de proteção – policiais, promotores, professores, conselheiros tutelares, agentes de saúde e assistentes sociais. A capacitação destes profissionais é apontada por Fernandes da Silva como imprescindível. “O entrevistador capacitado é essencial ao sucesso do depoimento especial, aliado à dedicação de todos os servidores”, pondera.
O magistrado realiza reuniões periódicas para a preparação de todos e tenta avançar também na prevenção. Neste ponto, realiza encontros em escolas, com professores e alunos, para conscientizar, em especial, a questão do abuso sexual infantil. Mesmo sem dados estatísticos, ele reconhece que o número de crimes desse tipo aumentou na região.
Em Braço do Norte, o juiz Klauss também investe em campanhas nas escolas para tratar do tema abuso sexual contra crianças e adolescentes. Atualmente, planeja reunir os diversos integrantes da rede de proteção para tratar sobre o protocolo da comarca relativo ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, assim como realizado em Ponte Serrada.
Leia mais: Lei n. 13.431/2017
Capacitação para entrevistas
A CEIJ – Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – em conjunto com a Academia Judicial, estruturou salas e capacitou entrevistadores nas 65 comarcas que realizam o maior número de audiências com inquirição direta de crianças e adolescentes. O curso tem 56 horas/aula e reúne, em aulas teóricas e práticas, oficiais da infância, psicólogos e assistentes sociais do Poder Judiciário.
A coordenadora da CEIJ, desembargadora Rosane Portela Wolff, informou que em breve será finalizado o Manual de Referências Técnicas para atuação no Depoimento Especial. Também será assinado um termo de cooperação técnica entre o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e a Polícia Civil. A articulação permitirá a capacitação de toda a rede de atendimento e deve evitar a repetição inadequada do depoimento de crianças e adolescentes, bem como o excessivo tempo de duração dos inquéritos e processos.