Projeto com presos catarinenses estimula a reeducação através da leitura

“A gente vive apenas dentro deste mundo e ler me ajuda bastante”, revela, timidamente, M.Z., que está cumprindo pena no Presídio Regional de Joaçaba (SC) por tráfico de drogas. Agora, aos 40 anos, ela começa a descobrir o prazer da leitura e desbravar outra realidade a partir de grandes clássicos. Márcia e outros 60 detentos fazem parte do Projeto Reeducação do Imaginário, implementado há oito meses na Vara Criminal do município, pelo juiz de Direito Márcio Umberto Bragaglia.

Usando o uniforme verde, ela fala um pouco desconfiada. “Já tive a minha cara em muitos jornais por aí”, justificou. M., que trabalha diariamente na cozinha do presídio, já está no terceiro livro. Por enquanto, o seu preferido foi o romance Crime e Castigo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866, que conta a história de um jovem estudante que comete um assassinato e se vê perseguido por sua incapacidade de continuar sua vida após o delito. “É como a história da gente”, compara.

A iniciativa prevê reeducar o imaginário dos apenados pela leitura de obras que apresentam experiências humanas sobre a responsabilidade pessoal, a percepção da imortalidade da alma, a superação das situações difíceis pela busca de um sentido de vida, a redenção pelo arrependimento e a melhora progressiva da personalidade.

Isso funciona quando os detentos, voluntariamente, dedicam parte do seu descanso à leitura. Durante o dia, eles exercem uma série de funções, como trabalhos de cozinha, limpeza, artesanato e fabricação de sapatos. “Um dos objetivos indiretos é exatamente ocupar o tempo livre com cultura”, explicou o magistrado, que conduz a entrevista com os presos para avaliar a leitura.

Bragaglia faz questão de registrar que os livros usados não custam “um centavo ao contribuinte”. “Quem paga são as pessoas que cometem pequenos delitos, desde que sem antecedentes criminais. Adquirem as obras em edições de bolso e entregam no prazo estipulado, acompanhadas de nota fiscal”, completa.

Outro ponto que o magistrado pontua é que a inspiração do projeto é conseqüência das lições do filósofo Olavo de Carvalho. “Ensinou o professor que para o exercício de qualquer atividade intelectual séria é imprescindível um prévio trabalho de fortalecimento do caráter. A grande literatura é um instrumento poderoso neste sentido, pois permite que a experiência humana do real, seja absorvida e refletida ao máximo”, considerou.

O juiz, acompanhado dos assessores, vai até o presídio para entrevistar os presos, após a leitura de cada livro.  “Sentimos que os detentos realmente se interessaram por Crime e Castigo e o leram, alguns duas vezes, porque respondiam às perguntas da equipe com conhecimento de causa, ainda que com dificuldade, em especial pelos nomes russos”, afirmou.

No começo a agente penitenciária Mari de Melo pensou que os detentos não teriam o aproveitamento esperado, já que o nível de escolaridade é baixo na unidade. “Me surpreendeu o interesse deles”, disse.  Mari percebe que o ambiente está até mais calmo, já que o trabalho e a leitura tem gerado uma “ocupação positiva do tempo”. Ela sente vontade, também, de ler os clássicos, mas não encontra tempo, já que está estudando novamente.

“Debatemos bastante o livro”, lembrou R.D., que também está presa por tráfico de drogas. Além disso, durante as conversas, elas tentam ajudar quem tem dificuldade de entender a leitura. Junto com o livro, cada um recebe um dicionário da Língua Portuguesa e tem a oportunidade de anotar as dúvidas, para tirá-las durante a entrevista com o juiz.

Para essas mulheres, que trabalham na cozinha, outra obra também fez a diferença. Durante a leitura de Otelo, peça escrita por Shakespeare, elas organizaram um grupo de leitura, onde cada uma assumia um personagem da trama. O texto trata, entre outras coisas, da violência contra a mulher, de ciúme. “Eles tinham o roteiro da peça na cabeça”, constatou o juiz.

Alguns, ainda, demonstram entusiasmo. Como um senhor já idoso, que chegou a se levantar da cadeira para contar os motivos que levaram o personagem a cometer o crime e o coração bom no final das contas. “Isso se repetiu em relação à vários detentos, merecendo destaque o grau de identificação pessoal de alguns deles”, garantiu Bragaglia.

Mais do que a remição da pena, já que cada 12 horas de leitura correspondem a menos um dia de cumprimento da pena, o magistrado testemunha que detentos em que não se depositava muitas esperanças deram entrevistas contundentes, demonstrando que leram a obra atentamente e, mais do que isso, se interessaram pela leitura, pedindo mais. “Já se pode perceber que há um ar de reflexão por trás da leitura que os apenados fazem, de modo que é possível acreditar que estes livros poderão ajudá-los a ter novas impressões e perspectivas de si e da realidade”, avalia.

Além de Dostoiévski e Shakespeare , os outros autores que estão na estante da biblioteca são: Joseph Conrad (Coração das Trevas), Herman Melville (Moby Dick), Stendhal (Vermelho e o Negro), Thomas Mann (Montanha Mágica) e, o mais recente, John Milton (Paraíso Perdido). Eles são escolhidos com base na obra de Otto Maria Carpeaux, sobre a História da Literatura Ocidental. Em geral, tratam de remição da culpa e noções de bem e mal.“Não precisamos viver todas as experiências para saber como é, já que a poesia é uma forma memorável de dizer a realidade”, reflete Bragaglia.

Para ele, a educação é um projeto sem garantia de resultados, é uma aposta. “Mas, os resultados já são incríveis. No final, esses presos vão ter lidos melhor do que a média da população brasileira”, concluiu. 

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